Compartilho com vocês uma interpretação fantástica acerca do trauma baseada no mito grego da Medusa, feita por Peter A. Levine em seu best seller “Uma voz sem palavras: como corpo o libera o trauma e restaura o bem estar”.
Peter, um pesquisador norte americano, psicólogo e biofísico médico dedicou sua vida (desde a década de 70) a estudar e desenvolver sua abordagem terapêutica para lidar com o que hoje convencionalmente chama-se de TEPT (Transtorno por Estresse Pós Traumático). Sua tese defende a necessidade da inclusão de processos corporais instintivos e não apenas mentais ou comportamentais para resolução de traumas, muito similarmente ao que em Terapia Craniosacral denominamos como processos de Liberação Somatoemocional®, onde a liberação de conteúdos emocionais (por vezes intensos) acontecem espontaneamente associados à manifestações corporais (físicas), onde o indivíduo tem a oportunidade de se mover através da experiência traumática memorizada pela mente-corpo e liberá-la com o suporte terapêutico para reconquistar novamente um estado de bem estar físico-emocional.
Medusa
A mitologia nos ensina a enfrentar os desafios com coragem. Mitos são histórias arquetípicas que tocam o nosso âmago de forma simples e direta. Eles nos lembram de nossos anseios mais profundos e revelam forças e recursos ocultos. Também são mapas de nossa essência natural, caminhos que nos conectam uns aos outros, à natureza e ao cosmo. O mito da Medusa capta a essência do trauma e descreve o caminho para a transformação.
Nesse mito grego, quem fitasse os olhos de Medusa era imediatamente transformado em pedra… congelado no tempo. Antes de partir para derrotar esse demônio de cabelos de serpente, Perseu foi se aconselhar com Atena, a deusa da sabedoria e da estratégia. Seu conselho foi simples: em nenhuma hipótese ele deveria olhar diretamente para a Górgone. Levando muito a sério o conselho de Atena, Perseu empunhou seu escudo protetor para que refletisse a imagem de Medusa. Dessa forma, conseguiu cortar sua cabeça sem olhar diretamente para ela e, assim, evitou ser transformado em pedra.
Se queremos transformar ou trauma, precisamos aprender a não confrontá-lo diretamente. Se cometermos o erro de confrontar o trauma de cabeça erguida, Medusa, fiel à sua natureza, nos transformará em pedra (…) quanto mais lutamos contra o trauma, maior será seu domínio sobre nós. Quando se trata de trauma, acredito que o “equivalente” ao escudo refletor de Perseu é a forma como o corpo reage ao trauma e como o “corpo vivo” personifica a resiliência e os sentimentos de bem-estar.
Há mais nesse mito.
Depois que Medusa foi degolada, seu corpo deu origem a duas entidades míticas: Pégaso, o cavalo alado, e o gigante de um olho só, Crisaor, o guerreiro da espada de ouro. A espada de ouro representa a verdade penetrante e a clareza. O cavalo é o símbolo do corpo e da sabedoria instintiva: as asas indicam transcendência. Juntos, eles sugerem a transformação por meio do “corpo vivo”. Juntos, esses aspectos compõe as qualidades e os recursos arquetípicos que um ser humano precisará mobilizar para curar a medusa (paralisia do medo) chamada trauma. A habilidade de perceber o reflexo de Medusa e de reagir a ele está espelhada em nossa natureza instintiva.
Em outra versão do mesmo mito, Perseu pega uma gota de sangue de Medusa degolada e divide-a em dois frascos. A gota de um frasco tem o poder de matar, a outra gota tem o poder de ressuscitar os mortos e restituir a vida. Revela-se aqui a natureza dual do trauma: primeiro, sua habilidade destrutiva de roubar a capacidade das vítimas de viver e desfrutar a vida. O paradoxo do trauma é que ele tem tanto o poder de destruir quanto de transformar e de ressuscitar. Se o trauma será uma medusa cruel e punitiva ou um veículo que nos fará voar às alturas da transformação e do domínio depende da forma como o abordamos.
O trauma é um fato da vida. Entretanto, ele não precisa ser uma prisão perpétua. É possível aprender com a mitologia, com observações clínicas, com a neurociência, com o abraçar do corpo “vivo” experimental e com o comportamento dos animais – e assim, em vez de entrar em luta com nossos instintos, acolhê-los. Com orientação e apoio, somos capazes de seguir o exemplo dos animais e aprender a tremer e estremecer – uma referência de Peter aos espasmos musculares que acontecem após a vivência de um grande estresse com sensação de paralisia e impotência que ocorre com animais e seres humanos – que se permitem – retomando nosso caminho e retornando à vida. Se formos capazes de aproveitar essas energias instintivas primordiais e inteligentes, podemo-nos mover através do trauma e transformá-lo.